TURNÊS

GIL & MILTON 2000

Sempre que me perguntavam por que eu não tinha ainda feito um trabalho com o Gil, eu respondia: porque as coisas tem a sua hora de acontecer. Apesar de nos conhecermos e nos admirarmos há tanto tempo, a vida nos reservou essa surpresa logo agora: ano 2000, sala de espera da era de Aquarius.


E foi começando devagar, tomando forma na Bahia (depois de pintar como um clarão na cabine de um avião por sobre as Gerais) e ganhando corpo aqui no Rio. Nosso Rio, terra de São Sebastião. E aqui estão, velhas notas, canções novas, sons, corações e bandas amalgamados por esses dois alquimistas que ainda estão chegando. Estão chegando os alquimistas.
Milton Nascimento

Um ano após nosso primeiro encontro na casa de Milton, aqui estamos, disco lançado, show ensaiado, público convidado para o encontro maior. Vamos ao espetáculo que junta nossas músicas, nossas histórias de palco, nossas estradas de vida.

Com a mesma alegria e emoção que marcaram o trabalho que nos trouxe até aqui, agora vamos tocar e cantar pra vocês e para nós. Para que tudo se transforme em vida, canteiro, cheio de flores, corações cheios de lumes, almas cheia de amores!
Gilberto Gil

Este show foi fiado e trançado por Milton Nascimento e Gilberto Gil a quatro mãos, desde o fim de 1999.
Durante todo esse tempo as mãos de toda a equipe de produção, técnicos e banda, participaram da execução dessa trama. Hoje, agradecemos aos dois, Gil e Milton, por essa oportunidade e privilégio. Agradecendo, ainda, a todas as outras mãos que direta ou indiretamente estiveram conosco nesse projeto.
GIL & MILTON

Mais do que uma parceria de gostos e afetos, mais do que um encontro histórico, 'Gil & Milton' é o resultado genial de uma conjuração baiano-mineira em favor da música, ou o que a crítica francesa Véronique Mortaigne chamou de casamento de "duas concepções do barroco brasileiro" - talvez nem tanto pelo estilo, mas por encarnarem um certo modo de expressão, ao mesmo tempo particular e universal.

De fato, pode-se dizer que eles são barrocos pela mestiçagem estética existente em suas obras, pela mistura de misticismo e razão, sombra e luz, pela convivência do sagrado e do profano e porque "captam sofrimentos e sentimentos, vida e morte", como disse um especialista do gênero, o também francês Germain Bazin, ao caracterizar os antecessores coloniais dos dois compositores.

O CD de Gil da Bahia de Todos os Santos e de Milton das Minas Gerais é a trilha sonora e poética de uma geração nascida durante a Guerra e que daqui a pouco chega aos 60 anos, artistas que misturam diversidade e que lutam contra a exclusão, incorporando sem preconceito ou discriminação todos os ritmos, cores e sons: o baião e o samba canção, a bossa-nova, o rock eletrônico, o reggae e o sambão, a sanfona e a guitarra elétrica.

Surgido quatro anos após uma conversa num vôo de avião, o disco estava destinado a ser mesmo uma viagem - digamos que uma procissão ou uma travessia pelo Brasil dessas últimas décadas, parando aqui e ali, encontrando uns e outros. Ora é o Ary Barroso de 'Maria' ou o Dorival Caymmi de 'Dora', ora o Luiz Gonzaga e o Hervé Cordovil de 'Baião da Garoa', ora o Jorge Ben de 'Xica da Silva', além do inglês George Harrison de 'Something' ou do argentino Fito Paez de 'Yo Vengo a Ofrecer Mi Corazón'.

Nessas paradas de caminho, há ressonâncias e evocações de personagens clássicos de nossa história musical - a cafuza rainha do frevo e do maracatu, a negra imperatriz do Tijuco, dona de Diamantina - e de dores crônicas do país: a saga da seca, os retirantes, a terra crestada, a espera da chuva, o trabalho duro para "vida de gente levar". São mazelas que, no entanto, não fazem do disco um lamento: ele é de canto, não de pranto.

Quando em meio a seus reencontros afetivos Gil e Milton retornam a eles mesmos, surge a grande surpresa do disco: cinco composições inéditas, algumas já clássicas. Ouçam, por exemplo, ?Sebastian'.

É uma pungente, dorida homenagem à "tão castigada e tão bela" Cidade Maravilhosa, feita como uma prece ao seu padroeiro São Sebastião. Que o protetor e sua protegida, "sarada cada ferida", só chorem de amor. Milton chega a oferecer seus versos em sacrifício, propondo imolar o próprio canto:

"Eu prefiro que essas flechas
Saltem para minha canção"

De outra música, 'Lar hospitalar', sai um grito de resistência ao desencanto pós-moderno, um 'não' a quem acredita que "a vida é pura maldição" e que por isso nada vale a pena, "só matando meio mundo". Contra esse pessimismo impaciente, essa vontade inútil de "limpeza hospitalar" (prima da étnica), se insurge, com fina ironia, o poema de Gil:

"Eu que moro onde o pecado mora ao lado(...)
Eu que já fui preso por porte de baseado
É baseado nisso que eu lhe digo não, não, não".

Por tudo, pelo novo e pelo velho, 'Gil & Milton' é uma fascinante viagem que, como o Barroco já havia feito antes, liga não apenas Bahia e Minas, mas o Brasil e a América Latina, o Brasil e o mundo. Quando a partir do dia 25 de outubro, o disco estiver sendo lançado simultaneamente no Brasil, Europa, Japão e Estados Unidos, não se verá nada mais baiano, nada mais mineiro, nada mais brasileiro, nada mais estrangeiro do que essa síntese afro-barroco-baiano-mineiro.

Bendita conspiração, bendito encontro desses dois companheiros que, como numa das canções, "o destino juntou".
Zuenir Ventura
Out 2000