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DIÁRIO DE ESTRADA: BITUCA'S TRIP Nº 2 - JUIZ DE FORA (MG) - ABRIL 2010

Na segunda parte da série, o jornalista Danilo Nuha acompanhou a Trupe Nascimento até o interior de Minas.

Gilberto Gil havia agendado um show para o dia 29 de abril de 2010, na cidade de Juiz de Fora (MG). Acompanhando Gil, estaria Bem (violão) e o lendário maestro Jaques Morelembaum (cello). Era a vez de sua mais recente turnê - "Banda Dois" - fazer chover. Pra completar, nos bastidores, foi tramado algo que iria surpreender muita gente: a participação especial de Milton Nascimento e metade de sua gangue: Lincoln Cheib e Wilson Lopes.

Quase dez anos depois da gravação do disco e da série de shows "Gil e Milton"- que celebrou o encontro dos dois gênios - agora era a vez de uma cidade no interior de Minas Gerais ter o privilégio de presenciar mais este momento histórico para a música brasileira. Gil e Milton no palco do mitológico Theatro Central de Juiz de Fora, com uma retaguarda da pesada: Cheib no cajon; Wilson Lopes, Bem Gil nos violões e Jaques Morelembaum no cello.

Rio de Janeiro, terça-feira, 27 de abril de 2010

Na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente no bairro do Itanhangá, dentro da casa de Milton, funciona o escritório da Nascimento Música. Lá, Beth Campos e Baster Barros comandavam a produção de Bituca para o encontro com Gil.

Por volta das 11h, o roadie Darck Fonseca e o técnico de monitor Marcos Gil, chegaram para preparar o ensaio de Milton com todos os músicos envolvidos no show, exceto Giberto Gil. Às 17h, Bem e Jaques, devidamente armados com seus instrumentos, se posicionaram para começar o som no Bituca's Estúdio. "Sebastian" e "Babá Alapalá" foram as músicas escolhidas para celebrar o encontro. O ensaio durou menos de uma hora e, para aproveitar o tempo, Bem Gil propôs a Wilson Lopes e Lincoln Cheib que eles também fizessem uma participação especial na música "Viramundo", antes mesmo de Milton entrar em cena.

Na parte musical, tudo certo. Após o ensaio, Milton seguiu de carro para Juiz de Fora enquanto Beth Campos e Baster acertavam os últimos detalhes da viagem. E como Milton cantaria apenas duas músicas, não precisariam de mim, nem pra fazer a assessoria de imprensa, nem para operar o teleprompter. Mas aos 45 do segundo tempo, Beth e Baster julgaram necessário ter alguém responsável pelo TP e, que ao mesmo tempo, pudesse ajudar na produção.

De acordo com o itinerário, Wilson Lopes e Lincoln Cheib alugariam um carro na manhã seguinte. Iriam de Belo Horizonte diretamente a Juiz de Fora. Beth Campos, Baster, Darck e Gil partiriam também de carro, só que do Rio. No meu caso, embarcaria na mesma hora, mas saindo da rodoviária.

A matemática da viagem pensada por Baster e Beth deu certo. Todos chegaram a Juiz de Fora sem nenhum problema e às 17h30 já estavam prontos para o ensaio geral antes do show. Desta vez, com a participação de Gil. Ele foi o primeiro a chegar ao teatro. Gil entrou com jeito de quem queria começar o som. Antes de ir para o camarim, parou no palco e ficou trocando ideias com Bem e Jaques, que já estavam em ritmo de aquecimento.

Com o violão em punho, a primeira música que Gil tocou foi "Flora". Mas até que o som fosse entrando nos eixos, Gil ainda mandou "Esotérico", "Realce" e a quase inédita "Das duas, uma". Pausa para água, o som estava perfeito. Bem começou a explicar a Gil que tinha convidado Wilson Lopes e Lincoln Cheib para tocar com ele em "Viramundo". Bem apontou os dois músicos sentados na plateia, Gil os convocou ao palco pelo microfone. O entrosamento foi simultâneo.

Gil começou a procurar Milton pelo teatro. E antes que alguém o chamasse, Bituca foi ao seu encontro. Como sempre, Gil o recebeu de braços e sorrisos abertos. Enquanto Milton conversava com Gil, entrei no palco e perguntei a Wilson se poderia deixar "Sebastian" em ponto de bala no TP. Diante da resposta positiva, preparei a música e fiquei em estado de alerta para o início do ensaio. Sinal verde, Milton afinado na primeira estrofe.

Mas no momento em que Gil se preparava para a segunda, uma produtora me puxou pela camisa para perguntar se eu tinha preparado a parte de Gil no TP. "Tá tudo aqui" - respondi. Mas já era tarde, pois cinco segundos de desatenção com o teleprompter é suficiente para atrasar a banda inteira. Resultado: Milton percebeu meu vacilo, parou a música e disparou em minha direção:

"Ô Japonês! Tá tudo atrasado aqui, pô! Desse jeito não vai dar!"

Com essa bronca, o teatro inteiro olhou pra mim, o que me deixou ainda mais nervoso. Depois da bronca do chefe, muita gente me sacaneou e outros preferiram reforçar o pedido de atenção. Mas quando rolou a segunda música, "Babá Alapalá", o ambiente era outro, tudo correu numa órbita pra lá de transcendental. Gil e Milton: a força e a magia. Milton e Gil: a magia e a força. Mas quando todos já se davam por satisfeitos diante de tanta beleza, Milton procurou Gil e lançou:

"O que você acha da gente andar pelo teatro cantando "Babá Alapalá" no meio do público, com o show valendo? "

Gil sorriu da travessura proposta por Milton e respondeu:

"Você hein! Pensa em cada coisa!"

Depois do ensaio, Milton conversou mais um pouco com Gil e foi para o camarim na companhia da irmã Beth Campos e dos sobrinhos João Vitor e Cecília. Aproveitei o intervalo para dar uma volta com o técnico de monitor Marcos Gil. As portas do teatro já tinham sido abertas. A expectativa do público em relação ao show estava no rosto de quem aguardava na fila. Um detalhe curioso, fora o pessoal da organização do evento, a maior parte do público não sabia da presença de Milton em Juiz de Fora. Gil e Milton, juntos, não é qualquer coração que aguenta.

Faltavam apenas vinte minutos para o show quando retornei ao teatro e assumi meu posto no TP. Foi quando um dos roadies de Gil percebeu meu nervosismo de principiante e começou a me estimular através de uma tiração de sarro positiva.

Banda Dois em cena. A plateia paralisada. Gil, o músico herói com sua "capa de estrelas", hipnotiza o teatro. De repente o vento muda, com ele chega o pressentimento de que algo luminoso estava prestes a acontecer. O primeiro alerta foi dado quando Gil convidou Wilson Lopes e Lincoln Cheib para abrirem os trabalhos no "terreiro" com "Viramundo". Nesta hora, Milton em posição de Obá, se levantou do círculo e passou a encarar o palco como se pedisse licença aos orixás. "Viramundo" cortava o ar, e quando entrou em sua estrofe derradeira, Gil chama a presença de Milton. O povo se alucina. O Theatro Central gira num turbilhão em 360° e num lapso de segundo se transforma definitivamente num grande terreiro.

"Sebastian" entorpece o público, que quer mais. Gil, no corpo de Oxóssi, toma a iniciativa e lança suas flechas: "Babá Alapalá". O mantra: Aganju, Xangô, Alapalá Alapalá Alapalá, vai crescendo, e a música se repete, deixando um rastro de transe. No auge do canto, Gil dá um sorriso enigmático para Milton, os dois se abraçam. Deixam o público em catarse quando seguem caminhando para o meio do teatro, ainda mais perto do calor do público. Ninguém parece acreditar na cena. Os músicos continuam em pleno voo, os instrumentos se transformam numa extensão do corpo. A música, a plateia, tudo está em outra dimensão. A multidão engole Gil e Milton. Eles, como xamãs do delírio, exigem mais, muito mais.

No auge do cântico, o dois vão até as entranhas do coletivo. Pisam e acariciam-lhes o fundo da alma. O ambiente, já tomado por entidades, ganha um ar no mínimo celestial. O que mais poderia ser dito sobre esta noite? Quem lá esteve, deve estar até agora sem entender a força ali presente. Um encontro tão marcante para a música brasileira que merecia até registro em enciclopédia, uma data que serviu para alinhar muito juízo perdido do lado de fora.


Danilo "Japa" Nuha
Assessoria de imprensa
Nascimento Música
danilo@miltonnascimento.com.br
(01/06/2010)

(Colaborou o jornalista Bruno Tasso, editor do Jornal Humanidade)